EDUARDO

- Então, Edu, você mexe nessas coisas de computação? - A Annabella perguntava para mim.

Eu não aguentava mais aquela mulher. Ela continuava me enchendo o saco.

- De vez em quando sim. Mas prefiro observar a flora e a fauna... - Respondi.

Eu não estava querendo conversar. Não sou muito sociável. Eu entrei pro grupo porque fiz amizade com o Vicente e com a Jaqueline. E porque eu queria conhecer melhor a natureza. E era ela que estava me avisando de algo naquele momento. Tinha alguma coisa errada com aquele lugar.

A Annabella começou a falar novamente. Eu dei uma resposta qualquer. Aquele lugar era silencioso demais. Quanto mais a noite caia, mais era perceptível isso. Annabella soltou uma risada. " O que essa maluca tá falando? " pensei. Então, ela ficou séria e fez alguma pergunta. " Nossa, que garota chata! " pensei. Respondi algo vagamente, e continuei olhar em volta, procurando algum sinal de vida animal.

- E de animal gente, você gosta? - A pergunta dela saiu de uma forma muito ofensiva.

Eu ia falar algo que ela não ia gostar, quando a gente ouviu um barulho da porta. Parece que os garotos haviam conseguido forçar a entrada da casa. O atabalhoado do Léo estava no chão, enquanto Vicente o ajudava a levantar, e a preocupada da Jaqueline estava correndo junto deles. Talvez achassem algo de útil lá dentro.

- Então, onde paramos? - Ela me perguntou.

Eu não tinha resposta para isso. Então, tentei desconversar:

- Você não vai lá ver como está o Léo?

Não, não... Ele já tem a ajuda do Vicente e da Jaque. Além do mais, a gente estava conversando. Então, qual era o assunto?

Agora eu não tinha escapatória. Só me restava ser sincero:

Bem, na verdade eu não sei. Eu não tava prestando muita atenção...

Ela começou a ter um ataque de fúria na minha frente. Ela foi falando e falando. Eu tentei avisar que tinha algo de estranho naquele lugar. Que eu percebia isso. Mas ela me ignorou e saiu de lá. " Pelo menos ela foi embora... " pensei. Olhei para a fogueira. Eu estava cansado da trilha. Para alguém que não era acostumado, essa é uma rotina muito diferente. Soltei um pequeno sorriso e tirei os óculos para limpar. Olhei para a casa. A Jaque e a Annabella estavam lá, conversando sobre algo. Balancei a cabeça quando me foquei na Annabella. Então, vi um vulto na janela do segundo andar por um instante. "Maldição de miopia" pensei. Quando coloquei novamente os óculos, o vulto havia sumido. Então, notei uma agitação na frente da casa. O Léo estava aflito, e falava alguma coisa com as garotas. Depois disso, ele e a Annabella entraram na casa. A Jaqueline deu uma olhada para dentro, e depois foi para perto da fogueira.


- Você está com frio? - Perguntei.


- Não muito. - Ela respondeu.


- O que houve lá dentro? 


- Não sei. Parece que encontraram uma menininha. Ela estava machucada.


- Por que você não foi ajudar?


- Minha mãe já dizia que muita gente as vezes só atrapalha. E você ficaria sozinho também....


- Sua mãe parece uma boa pessoa, mas eu acho que você deve ir. Aliás, acho que nós devemos ir.


Ela dirigiu-se lentamente para a porta, virou-se e disse:


- Tá bem escuro... Dá para ouvir eles falando. - Ela riu - Eles estão discutindo por alguma coisa. Deve estar tudo bem...


- É o que vamos ver. - Eu falei.


Quando eu tentei sair da beirada do poço, alguma coisa me puxou muito forte para dentro dele. Eu caí com velocidade e batendo em muitas coisas, mas caí em cima de algo coisa que amorteceu a queda. A Jaqueline percebeu e começou a gritar lá de cima. Eu ainda estava me recuperando e achando um jeito de ficar em pé naquela escuridão quando ouvi os berros do Léo e da Annabella. 


- Fiquem calmos. - Eu gritei - Eu estou bem, só com alguns arranhões. - Peguei o celular do meu bolso e comecei a ligá-lo. - Algo amorteceu minha queda e... - Não consegui mais falar. O que eu vi naquela hora só me fez gritar. Havia dezenas de corpos no chão, alguns em estado de decomposição. Devido a adrenalina eu não estava sentido o cheiro, mas agora ele era insuportável. O pessoal lá em cima ficou agitado com meu berro, e começaram a gritar novamente. Se eu falasse para eles o que eu tinha visto, ia ser pior, então gritei:


- Calma! Eu tô bem, não foi nada. Só me assustei com o... lugar. - Notei que havia uma passagem na parede do poço, entre os corpos. - Achei uma abertura galera, acho que vai dar em algum lugar. Vou investigar para ver o que acho.


- O que vamos fazer enquanto esperamos você? - Annabella gritou.


Eu ia falar para esperarem, mas eles começaram a discutir de novo. Eu suspirei, e me arrependi depois, pois o cheiro ainda estava muito forte. Tapei o nariz com uma das mãos, e gritei pedindo o que estava acontecendo. Eu vi que eles não iam me escutar mais, resolvi entrar naquela abertura.


O buraco começava estreito, mas ia alargando-se à medida que eu avançava. Em pouco tempo, eu estava me movendo tranquilamente naquele lugar. Eu ia iluminando o caminho com o brilho do celular. Era impossível, mas eu ainda nutria a esperança que poderia aparecer algum pingo de sinal para eu poder ligar para a emergência. Quando eu virei numa das curvas da passagem, eu acabei saindo dela. Ela dava para uma espécie de calabouço. Era um lugar pequeno, mas estava iluminado com velas. Havia uma mesa, coberta de sangue, um monte de utensílios de tortura -  como algemas de ferro -,  apetrechos de dissecação, umas cestas com ossadas de animais. Algumas pareciam ter um aspecto muito parecido com os ossos humanos. E talvez fossem. Havia três gaiolas enormes lá também. Numa delas, havia uma pessoa deitada. Lentamente, me aproximei. Então, percebendo quem era, gritei:

- Vicente! É você??

Deitado dentro da gaiola, estava Vicente. Tentei forçar a porta, mas não consegui. Me agachei, botei meus pulsos dentro dela e bati com força na cara dele. Ele acordou e olhou confuso para mim.

- Vicente, Vicente, você está bem?

- Ah... Eduardo? Que... Que lugar é esse?

- Eu não sei. Eu cai do poço e achei uma abertura lá que deu nesse lugar e... Espera, o que você está fazendo aqui?

- Sei lá... - Ele sentou-se  e colocou a mão na cabeça - Eu estava com o Léo na casa, e achamos uma garota. Ela não estava bem, estava toda coberta de sangue. Pedi para o Léo voltar e vir com ajuda. Eu estava com medo do que poderia acontecer com ela se fosse algo mais grave. Mais aí eu levei uma pancada na cabeça e acordei aqui, com você me batendo ainda mais forte.

- Hum. - Sentei no chão e cocei os olhos. - Nossa, que doidera. Como vamos tirar você daí?

- Não me pergunte. Ah, e você, está bem? E os outros, como estão? Como está a Annabella?

- Eu tô bem. Me arranhei um pouco na queda, nada muito grave. Os outros estão melhores do que eu. Eles tinham ânimo para discutir enquanto eu estava caído no poço. - Soltei uma pequena risada - A Anna tá melhor do que todos, foi ela que começou a discussão. 

Vicente riu.

 - Tipicamente dela.

- Você gosta dela não é?

- Eu? N-não cara... tá maluco?

- Sei... Cara, tantas para escolher, e você caiu nas graças justamente daquela garota...

- Eu não sei do que você está falando.

Soltei uma risada. Mas fiquei sério novamente. Não pudia esquecer da gravidade da situação. Olhei através da gaiola e vi uma porta escondida atrás de umas folhagens. Ela estava bem escondida.

- Interessante. - Falei.

- O quê?

- Tem uma porta aí. - Apontei o local. Vicente olhou para trás e virou-se para mim:

- Vai ver se tá aberta.

Levantei e tentei abrir a porta. Não consegui.

- Não dá, ela não quer abrir.

- Droga! - Vicente se levantou e algo caiu da roupa dele. Era uma chave.

- Me dá aqui, vou tentar abrir a gaiola!

Então abri a gaiola, e ajudei ele a sair de lá.

- Pronto, - ele disse - podemos ir embora! 

- Só não sabemos como...

- Podemos voltar e tentar achar outra saída.

- Bem, eu não te contei, mas... tá cheio de corpos lá dentro no poço. 

- Corpos?

- Aham, gente morta. 

- Como assim?! 

- Não sei. Parece que morreram porque tentaram voltar e pedir ajuda. Sei lá... 

Ficamos em silêncio um tempo.

- Esse lugar... Parece uma câmara de tortura não é? - Eu falei.

Eu não sabia o que fazer. Minha mente estava esgotada, uma das pernas dos meus óculos estava quebrada, e eu estava nervoso. Não conseguia pensar direito. Então Vicente tirou algo do bolso. Eram duas chaves.

- Estavam no seu bolso? - Pedi.

- Sim. Notei agora.

- Mas por que duas chaves, se achamos apenas uma porta?

- Sei lá... - Ele disse, ficando de pé por conta própria - Mas acho que uma vai funcionar...

Fomos até a porta, e a abrimos com uma das chaves. Atrás dela tinha um corredor enorme, apenas iluminado por velas. Caminhamos alguns minutos até chegar numa sala. Ela tinha as paredes preenchidas com alguma espécie de escrita antiga. Tinha um altar, e um monte de livros também. Então ouvimos passos rápidos vindo de outro corredor. Fomos rapidamente até lá, e começamos a caminhar. Cada vez que pensávamos em parar, ou voltar, os passos faziam-se ouvir na nossa frente. Parecia que alguém invisível corria de nós. Seguimos um bom tempo, até chegarmos numa bifurcação.

- E agora? - Vicente perguntou.

Olhei para o chão. Não vi marcas de pegadas. O caminho da direita aprofundava mais para debaixo da terra, e o da esquerda subia. 

Vicente era uma pessoa melhor que eu. Sempre estava disponível para ajudar os outros. Lembrei-me de quando fiz amizade com ele. Aquelas histórias clichês do cara que não podia se defender sozinho, e alguém aparece para proteger. Foi assim entre nós. O pessoal da faculdade não gostava muito de caras diferentes. Achavam estranhos. Riam pelas costas ou até mesmo na cara. Não se importavam. Na época isso era algo que eu não suportava. Não queria continuar sendo esculachado. Eu só via um caminho para acabar com tudo. Um dia, Vicente e Jaqueline tomaram as dores por mim. Eles acham que não fizeram nada demais, mas eles salvaram minha vida. Agora era a minha vez de salvar a dele.

- Você fica com a esquerda. Eu vou pela direita.

- Por que? Não vamos juntos?

- Não. É melhor que nos separemos. Se alguém encontrar a saída, volta buscar o outro, beleza? Com ajuda.

- Tranquilo. Mas, se estiver em apuros, é só me chamar, ok?

- Sim, amigo.

Então ele começou a caminhar. Mas apenas quando ele estava a alguma distância, eu pude me mover. Mandei ele pro caminho que eu julgava melhor. "Espero que eu tenha acertado" pensei. Enquanto eu caminhava lentamente, e a medida que eu descia, eu procurava não pensar em nada. Então, depois de alguns minutos, encontrei uma porta. Era feita de madeira e pintada de vermelho. Abri ela facilmente. Dentro daquele lugar, havia apenas uma espécie de alavanca no meio, em cima de um pedestal, e um monte de moldes de quadros pendurados na parede. Havia uma porta de madeira do outro lado da pequena cúpula também. 

Fui até o pedestal, passei as mãos na alavanca. Havia algo entalhado na pedra:

" A saída está nas suas mãos. "


Não tinha ideia do que aquilo significava. Suspirei profundamente e, quando me virei para voltar, havia uma garotinha me cuidando na porta. Ela tinha o cabelo longo e escuro, usava um vestido longo e preto. Tinha uma boneca em uma de suas mãos. Paralisei de medo. Ela falou para mim gentilmente:

- A saída desse lugar é atrás daquela porta. Se você ir embora, será livre. Se não tiver o que precisa, morrerá.

Eu mal conseguia falar. Reuni o que restava da minha coragem, e balbuciei:

- C-como a-assim ? - Engoli em seco.

Ela estava com a cabeça abaixada, olhando para a boneca. 

- Você deve usar a chave que recebeu. 

- Chave? - Falei.

- Sim. Você foi o escolhido não foi? - Ela brincava com o cabelo da boneca.

Coloquei as mãos nos bolsos. Eu não tinha chave. "Do que essa garota está falando? Eu não recebi... Espera, ela tá se referindo a chave extra do Vicente." pensei.

Ela olhou para mim de uma forma assustadora, e sorriu. Seus lábios estavam com uma cor vermelha muito forte. 

- Você não é o escolhido.

Fui para atrás, e bati na alavanca, acionando-a. Um barulho ecoou pelo lugar, e a menininha começou a estremecer. Quando ela parou, ela estava num estado de êxtase. Ela olhou para mim e disse:

- Agradeço pelo presente, mas você já traçou seu destino.

Ainda confuso, percebi que as velas se apagaram e então a porta se fechou rapidamente. Eu estava em total escuridão. Tentei me mexer, mas algo me segurava.

A última coisa que senti foram vários puxões extremamente fortes, despedaçando o meu corpo e levando os pedaços para dentro das molduras na parede. 

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