Para a postagem de hoje eu trouxe uma passagem do livro ''Em águas sombrias'' da Paula Hawkins. O livro é bastante intenso e aborda sobre afogamentos na região de Beckford. Para quem gosta de thrillers do estilo de ''Objetos Cortantes'' da Gillian Flynn e ''A Garota no Trem'' também da Hawkins, irá se apaixonar por esse livro tanto quanto eu. 


                                                                             ***
O POÇO DOS AFOGAMENTOS

Libby, 1679

Ontem eles disseram amanhã, o que agora é hoje. Ela sabe que não vai demorar. Eles virão para levá-la até a água, para julgá-la. Ela quer que chegue a hora, torce para que chegue a hora, quanto mais cedo, melhor. Está cansada de se sentir tão suja, da coceira na pele. Sabe que não vai ajudar muito com as feridas, já pútridas e fedorentas. Precisa de baga de sabugueiro ou de calêndula, não sabe qual das duas seria melhor, ou se já é tarde demais para fazer qualquer coisa. Tia May saberia, mas ela já se foi, morta na forca há oito meses. 

Libby adora a água, ama o rio, apesar de ter medo da parte funda. Vai estar fria o bastante para congelá-la nessa época, mas pelo menos haverá de tirar os insetos de sua pele. Eles rasparam sua cabeça assim que a prenderam, mas seus cabelos já cresceram um pouco, e há coisas rastejando por todas as partes, cavoucando sua pele, elas as sente nos ouvidos, nos cantos dos olhos e no meio das pernas. Ela coça até sangrar. Vai ser bom lavar isso tudo, o cheiro de sangue, dela própria.

Eles chegam pela manhã. Dois homens jovens, brutos, física e verbalmente - ela já foi alvo de seus punhos antes. Mas não mais, agora eles têm cuidado, porque ouviram o que disse o homem, aquele que a viu na floresta, as penas abertas e o demônio entre elas. Eles riem e lhe dão tapas, mas também têm medo dela e, de qualquer forma, ela já não está nada atraente. 

Ela se pergunta: será que ele vai estar lá para vê-la, e o que haverá de pensar? Ele a achara linda um dia, mas agora seus dentes estão apodrecendo e a pele está cheia de hematomas como se fosse uma morta-viva. 

Eles a levam para Beckford, onde o rio faz uma curva acentuada ao redor do penhasco para então fluir lenta e profundamente. É aqui que ela vai nadar.

É outono, um vento frio sopra, mas o sol está brilhando e ela se sente envergonhada, nua assim sob a claridade intensa, diante de todos os homens e mulheres do vilarejo. Ela tem a impressão de poder ouvir a reação deles, de pavor ou surpresa, diante daquilo em que se transformou a encantadora Libby Seeton. 

Ela está amarrada com cordas grossas e ásperas o bastante para fazerem um sangue vivo e fresco brotar em seus pulsos. Só os braços. As pernas permanecem soltas. Então amarram uma corda ao redor de sua cintura para, no caso de ela afundar, poderem puxá-la de volta à superfície. 

Quando a levam até a beira do rio, ela se vira e procura por ele. As crianças gritam nessa hora, achando que está jogando uma praga nelas, e os homens a empurram para dentro d'água. O frio rouba-lhe todo o fôlego. Um dos homens empunha uma vara e a empurra em suas costas, fazendo-a avançar cada vez mais até ela não conseguir ficar em pé. Ela desliza para baixo, para dentro d'água. Ela afunda.

O frio é tão intenso que ela esquece onde está. Abre a boca, puxa o ar e sorve a água negra, começa a engasgar, se debate, agita as pernas, mas está desorientada, já não sente o leito do rio sob os pés.

A corda a puxa com força, aperta sua cintura, esfola a pele.

Quando a arrastam de volta à margem, ela está chorando.

-Mais uma vez!

Alguém clama por um segundo ordálio.

-Ela afundou!* - grita uma voz de mulher -Não é uma bruxa, é só uma criança.
(*Segundo as crenças, se a mulher flutuar é considerada uma bruxa, se afundar, é inocente.)

-Mais uma vez! Mais uma vez!

Os homens a amarraram de novo para o segundo ordálio. Agora de um jeito diferente: polegar esquerdo com dedão do pé direito, polegar direito com dedão do pé esquerdo. A corda ao redor da cintura. Dessa vez, eles a carregam para dentro d'água.

-Por favor - ela começa a implorar, pois não tem tanta certeza se vai conseguir enfrentar aquilo, a escuridão e o frio. ela quer voltar para um lar que já não existe, para uma época em que ela e a tia se sentavam diante da lareira e contavam histórias uma para a outra. Quer estar na própria cama na casinha delas, quer ser pequena outra vez, sentir o cheiro da fumaça da lenha, das rosas, da calidez da pele da tia -Por favor.

Ela afunda. Quando a arrastam para fora pela segunda vez, seus lábios estão do roxo de um hematoma e ela já não respira mais.




Escrito por: Paula Hawkins
Retirado do livro 
''Em Águas Sombrias''
2017
Transcrito por: Carla Gabriela

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